19.12.14

pintores do deserto

afonso é o meu nome. em tempos que não voltarão fui poeta, alcaide-mor, vedor da fazenda. apodreço agora nas masmorras imundas do mulei moluko. jaz meu filho no campo de batalha, morto a meu lado, braço com braço. dos meus outros dois filhos nenhumas notícias tenho, finados também, ou desaparecidos na eternidade. meus olhos não mais os verão. aqui, onde os dias escorrem iguais às noites, morro-me de coração trespassado pela dor.

chamava-me afonso de portugal. mas que portugal há agora, que resta do reino, depois de, bando de loucos comandados por um lunático, havermos desembarcado na costa do mouro e tingido de sangue o deserto? 

afonso sou agora, apenas, e em pouco nada serei. 

e só no sofrimento encontro alento. tudo o que me aconteceu, afinal é pouco ainda: que penas não serão brandas para um pai que os filhos arrasta para a perdição e lhes sobrevive?

18.12.14

a memória da espada

recordou o dia, o primeiro, em que enconchou as mãos para Pedro se alçar para o potro, aquele que mais tarde deviria montada inseparável. 

recordou como os seus braços firmaram Pedro na cela, quando o pirralho, ainda incerto, começou a escorregar, sob o olhar atento do pai, que até há pouco ali ombreava com ele nesta empreitada. 

recordou o jovem desajeitado a pegar na espada, demasiado pesada, e como o menino se fez homem e das duas mãos a espada passou para uma, e tantas vezes assim, lavada em sangue, como a que agora lhe mantinha em tensão o braço. 

recordou o dia de chegada de Constança e logo ali o olhar possessivo de Pedro para os cabelos de ouro da galega. 

recordou as indas e vindas dos irmãos da galega, os jantares em que Pedro os sentava à sua direita, como o Senhor fazia com os da sua confiança, a traição a nascer debaixo dos seus olhos qual cobra a embrionar no ovo. 

recordou os dias de discussões com os outros, aqueles ao seu lado, as conversas delongadas, as perorações, os cenários. 

recordou as noites em branco, os pesadelos sobre a revanche de Pedro: ele sabia-o bem, até podia antever, ele, o tutor de Pedro, sabia-o, e um frio, tão frio como a lâmina do punhal que trazia à cintura, lhe percorreu o peito. 

tudo isto recordou Pêro Coelho, mas o dado estava lançado, como naquela página do livro que um dia ouviu o padre ler a Pedro: era seu destino salvar o Reino, mesmo que para isso tivesse que imortalizar a galega. 

foi quando deixou cair a espada com a força de todas as memórias que transportava em si: e  assim não ouviu o grito visceral da galega, que outros conheciam por Inês, quando a alma brotou do corpo dela, em jorros, já no percurso para a eternidade.

16.12.14

as naus de portugal para a índia e da índia para portugal, deus as leva e deus as traz

sentia ainda unhadas dela a sangrar nos ombros, e os lábios e apertarem-se de desgosto, quando a vislumbrou, no cais, a faquear o ar com as duas mãos, pululando, em saltos longos, acima da turba frenética. 

na nau, mil homens: trinqueiros, marinheiros, grumetes, condestável, bombardeiros, capelão, escrivão, pagens, meirinho, dispenseiros, cirurgiões, carpinteiros, calafates, tanoeiros, mestre, contra-mestre, guardião e até um capitão, atroavam como se o mundo se fosse finar. que ia, ia, eles é que não sabiam:

assi como a morte não a pinta senão quem morre, nem se pode ser pintada senão vendo quem esta morrendo, assi o trago que passão os que navegam de Portugal a índia, não o pode contar senão quem o passa nem o pode entender senão quem o ve passar

escrevia de cochim, em janeiro desse ano de 1557 o padre gonçalo da silveira. 

era para ele a primeira viagem e sabia só o que tinha ouvido alumiar dos outros, daqueles que voltaram. medo, não tinha: respeito sim, pelas iras do mar, pelos males dos marinheiros. sentia já o primeiro deles, a saudade. 

    desse mal, não morreria, 
    de outros, só deus sabia. 
    deus o levava, ele o traria. 
    ou no mar o amortalharia.

rezou como o pai, lá distante, o apostolou à beira da oliveira consagrada à virgem, depregou os olhos do cais, cravou uma das suas unhas partidas na mão para se alembrar que estava vivo. 

conteve o grito, afogou o peito em ar, e com a garganta atada em lais de guia, largou-se, deixou-se partir.

14.12.14

primeiro que todos

ele morava no mundo, que era a rua, mas na verdade, não morava no mesmo mundo que todos, porque tinha um mundo só dele. vivia três portas acima da casa grande e quando saía, a mãe, ficava a olhar enquanto brincava com os outros. era maior que nós no tamanho, enorme na idade, gigante no varejo dos seus passos magérrimos, em perpétua corrida.

acho que foi antes do pequeno-almoço que me disseram que ele não ia correr mais: foi o primeiro  a morrer no mundo. foi ele que abriu o caminho aos incontáveis que foram depois, enquanto o mundo se foi enformando até ao tamanho de agora.

já não tomei o pequeno-almoço. talvez me tenham obrigado a almoçar, mas ao menos, não me impediram de chorar.

e como o fiz nesse dia: por ele, e logo por todos os que o seguiram.

13.12.14

bichos-de-conta

no quintal da avó apanho bichos-de-conta. não os há na casa grande, calhando não conseguem rolar subida a cima. saíssem de casa da avó, rebolavam até cairem para fora do mundo, que termina logo ali, no final da rua.

há uma porta da cozinha que dá para o quintal, e eu estou com uma mão cheia de bichos-de-conta, enrolados como os meus berlindes de vidro. mas sem estarem lascados, que o quintal não tem pedras brutas como as do recreio.
e a bisavó, envolta em preto, desde que o marido se foi, há tantas décadas, amofina-se, rala-se, fala das mulheres que emprega, daquilo que tem que lhes mandar fazer. é nonagenária, passaram os anos, ficou o uso. e nisto

    quero lanchar

imperativa a bisavó à avó
e a avó, envolta em castanho, fala comigo. há sempre coisas para me dizer quando estou no quintal. ela sabe que é a voz dela que impede que eu me estatele do muro onde estou, miniatura de funambulista. e nisto

    anda lanchar 

imperativa-me a avó
deixo os bichos em cima do muro, a guardarem-me o lugar. ingratos, aproveitam o momento de liberdade e levam sumiço. já não estão fechados em si, os bichos-de-conta. na cozinha, a bisavó e a a avó falam par-a-par: as suas palavras cruzar-se-ão, porventura, um dia, no infinito.

12.12.14

mira de ouro

era à quinta que saíamos à mesma hora. descíamos juntos a rua da escola, subíamos, de caminho, até ao miradouro e às vezes estacávamos ali, em espanto, os olhares a cruzarem-se no horizonte. num desses dias, aproximei a cara da dela. vi-lhe a expressão de pasmo e o fulminante olhar para cima, em busca de uma nuvem súbita, no céu absurdamente azul. o beijo ficou dependurado, periclitante, falho de coragem para saltar. na semana seguinte não repeti a ancoragem, nem na outra. nem na outra.

comecei a contar-lhe anedotas no trajeto. colecionei-as: arranjei repertório, anotava-as em bocados de papel que me atafulhavam os bolsos, copiava-as das seleções do reader’s digest da casa da avó, revistas amarelentas, de capa esbambalhada. treinei, afinei o remate com colegas, com a turma toda. um dia descobri que tinha cavado ouro com uma anedota novinhinha: quando a contei, os risos das minhas cobaias jorraram como água à abertura da torneira. era quarta.

na quinta, anedotei o caminho todo até ao miradouro. parámos. olhei para o céu: desnuvado, até onde a vista alcançava. avancei. com o sucesso do dia anterior

    já te contei aquela?

enquanto dardejava, os olhos dela, grandes, abriram mais, a cabeça inclinou-se na direção do poente e trinou a mais bela gargalhada desde que eu conhecia o mundo.

aproximei a cara, senti no ar ainda o perfume do riso. no céu não apareceram nuvens invisíveis. ela não olhou para cima.

foi então que o beijo, por fim, saltou.

8.12.14

um senhor muito velho mouco dos ouvidos

era pequenininho o mundo: corria da casa grande onde o avô morava comigo à casa da avó, que ficava na mesma rua, que era o mundo. e o avô, que não era avô mas bisavô, não era avô dos netos da avó que morava na mesma rua. era um avô só para mim. nesses tempos, deus estava no céu e o avô na casa grande. e o avô, que era o bisavô, era da idade de deus.

o avô via bem, melhor que eu, porque já tinha visto o mundo que havia para ver para lá daquela rua, mas ouvia mal. e se o avô não ouvia bem, deus era mouco, decerto: deus e o avô tinham feito a recruta juntos. para o avô me ouvir eu trepava-lhe para o colo e falinhava juntinho aos ouvidos dele. e quando tinha que rezar

  santificado seja o vosso nome venha a nós o vosso reino

trepava para a chaminé porque deus era um senhor muito velho e eu tinha que lhe explicar tudozinho ao ouvido. como ao avô.

e deus, tal como o avô, ouvia-me. nesses tempos.

1.12.14

nascer no mar

quando escolher morrer, não será de afogação. já experimentei, não quero lá voltar. aquilo que dizem, de que vemos a vida a passar-nos pelos olhos no dezasseis por nove de uma série de canal de cabo, que vemos as anjas de asas prontas a darem-nos cómodo é um mito. belo mito.

o que vemos é água, água infinita, água que nos ardenta os olhos, água que nos fura pelos poros grandes, e pelos infinitesimais, água que nos incha os pulmões e salga o coração, água que nos faz desviver numa ansiação de ar. acabei salvo, puxado, esbofeteado, esborrachado. espirrei água pelo nariz e pelos ouvidos e pelos olhos. espirrei tanta água que a vida irrompeu por mim adentro.

    mãe, ia morrendo hoje. na praia, mãe. já não me morro tão cedo, mãe.

não me vi nascer da primeira vez, mãe. mas parturiei-me da segunda vez, mãe.

eu nasci no mar.