30.9.15

ponto de fuga

de cada vez que chega a uma cidade, procura o mar. se não encontrar o mar, procura um lago, se não, um rio. não há cidades sem mares, ou lagos, ou rios. ou não são cidades. não é possível que homens se estabeleçam, alguma vez, permanentemente, distantes da água. ou não são homens.

um dia atravessou um oceano e chegou pela primeira vez àquela cidade. mais tarde, voltou à cidade tantas vezes que ela já o abraçava, a cidade. mesmo quando lá não volta, continua a voltar, a ser abraçado. neste permanente retorno, encontra-a como a encontrou no dia, esse dia. a avenida grande como o espanto, o mar que o crepúsculo alquimizou, o aroma da brisa jovem.

encheu os olhos de mar, até se marejarem, voltou-os depois para a encosta, cravejada de luz, fonte de onde nascem as estrelas. o céu desceu e é aqui, pensou. regressa lá, quando quer encontrar o seu ponto de fuga. a esse dia, a essa hora, àquela encosta que era afinal um céu, àquele céu que era afinal um mar. regressa. amoravilhado.

29.5.15

viagem de cima para baixo para cima

descia a avenida pela primeira vez no dia em que começava, descia a avenida pela última vez no dia em que acabava, descia a avenida todos os dias entre esses dois. 

todos os dias, à noite, fizesse noite, ou noite fizesse. subia o parque, descia o parque, virava capas e lia badanas, associava autores e editoras, coleções e traduções. 

não sabe o que deve a esses anos em que poucos comprava e em muitos tocava. talvez deva tudo, talvez não deva nada. hoje, apeteceu-lhe regressar a esse tempo. 

com júbilo, e até antecipação sente, afinal, esse tempo regressar a ele.

28.5.15

aos deuses não desconhecidos

havia qualquer coisa de deus entre os homens, nele. a indefinível qualidade dos deuses que foram criados à imagem e semelhança dos homens, dos deuses mais humanos que os seus criadores. 

não lhe eram desconhecidos: frequentava-os, frequentavam-no. sabia-lhes das fraquezas e das glórias. imitou-os nestas, escolheu seletivamente aquelas. ainda hoje não sei se os copiou, ou se foram eles que o imitaram, os deuses. 

ontem faltou-me, de novo. falta-me com frequência. a morte encontrou-o há já demasiados anos, com a idade que tenho agora. 

imagino-o sentado com eles, a orientá-los, com as suas palavra exatas, precisas, divinas, no fundo. felizes os deuses por o terem por lá. por isso o levaram, tão cedo, também lhe sentiam a falta, por certo. 

como os entendo: afinal são humanos, os deuses.

4.4.15

um tesouro no cerro

no cerro havia o tesouro escondido pelos romanos, ouro sem fim, moedas como as do museu, brilhantes, despojos de terras alonjadas, ajojando carretas de invasão, escondidas antes de batalha, esquecidas na fuga ignominiosa.

fazíamos espadas de madeira, e capacetes de cartão, e armaduras de papel, e sandálias de sapatos, e excursões de sábado, e mapas de almaço. desenhávamos o cerro, e alinhávamos bússolas e teorias, astrolábios de mão e pêndulos de tournesol. vedores de tesouros, de ouros, sem dores, só ilusões.

compro os lápis, HB, 2B, 4H, compro o caderno de almaço, traço a mina rija o esboço do mapa, re-traço a mina branda, refaço, redesenho. os meus mapas são precisos, rigorosos, perfeitos. neles afirmo o local do tesouro. tenho a certeza de que onde eu o marcar, aparecerá. tal como o tesouro dos romanos em fuga, o que nunca encontrávamos, mas que, no fim de sábado, sempre trazíamos.

15.3.15

ao despertar

foi breve o sono, pouco mais que duas ou três sombras, o tempo entre deixar que a minha alma se silencie, e descobrir que fala alto, a meio da noite.

foi breve o sono, apenas o tempo de um ou dois sonhos, tão lestos no passar que deles não retenho mais do que a memória de um rasto de luz.

foi tão breve o sono que hoje acordei com o corpo prodigiosamente desarrumado.

9.3.15

liberdade compulsiva

atravesso o campo em verde, a alameda em pedra, o caminho em terra solta. em todo o percurso encontro flores novíssimas, jorros de cor a brotar no chão, suplicando que lhes leve as formas de luz, que com elas pinte quadros, que as litografe no olhar. 

tiro a máquina de fotografar. enquadro, toco o obturador. e então, a realidade acerta-me no âmago, como o sol, violentamente azul, apercebo-me do absurdo de aprisionar a imagem das flores. porquê? para quê? a mim faço perguntas irrespondíveis.

liberto compulsivamente as flores: a imagem a elas pertence, como a solidão pertence a mim. 

8.3.15

uma infinita tristeza

je suis jean, disse-lhe eu, quando ela suprimiu o grito ao ver um morto abrir os olhos. abandonado no campo, para o regar com sangue, ela chegou primeiro que a eternidade. longos cabelos, um lago no olhar, um gesto terno e uma voz de aurora.

o nome não sei, não saberei – os nomes não importam. a vida, a ela a devo, nada mais interessa. assola-me a vergonha de ter fraquejado nas palavras quando a lâmina em brasa encontrou a bala e a obrigou a abandonar o aconchego do meu corpo. o sangue jorrou com força, e ela estancou-o com destreza igual à que mostrou para me doar a vida.

desmaiei de dor. o mundo apenas o vi de novo nos olhos dela, quando sussurrava baixo, jean.  lavou-me a ferida, aplicou ervas, enfaixou-me, saciou-me a sede e a fome. a mim, soldado de Soult, antes orgulhoso invasor, agora, esvaído vencido.

amparou-me até uma árvore, ajudou-me a sentar, encostado ao tronco adormeci. acordei aos primeiros raios do amanhecer. debalde a procurei, perto e até onde a vista conseguiu alcançar. chamei por ela uma vez, inconnue. depois calei-me, não queria atrair a atenção dos seus compatriotas. recuperei, mas os meus passos não voltaram a cruzar os dos meus companheiros de campanha. vivo em pleno a minha morte.

junto da cicatriz conservo o brinco que me deixou, dependurado de um fio. uma argola grande, como a saudade que dela tenho, como a tristeza que me assola, na luz das noites, e no escuro dos dias. 

para quê salvar o corpo, se a alma morre a cada hora?

18.2.15

projeto de descalço

estou no centro geométrico da avenida quando me ocorre descalçar-me. imagino-me chegar com os sapatos na mão e assaltam-me dúvidas, evidentemente. deverei aparecer com um sapato em cada mão, ou o par numa só? a ser, a esquerda, ou a direita? ou, unidos pelos cordões, dependurados do pescoço, cachecol estranho de inverno solarengo?

do ponto de vista cromático, os sapatos castanhos são um corpo estranho na mancha azul que me oculta a nudez. um corpo tão estranho quanto os contrafortes novos o são para os calcanhares puídos, avessos às quase estreias, um problema de ovo contra galinha, caso clássico, em desenvolvimento.

onde me dirijo, os pés ocultar-se-ão debaixo da mesa, após a singularidade momentânea tornar-se-ão invisíveis, não mais deles me recordarei até à saída. quiçá, após esse intervalo de tempo indefinido e infinito, o descalço não será o novo normal. ultrapassada a dúvida perene da mão adequada para o transporte, verei executivos manuseando sapatos, quais carlos e ega correndo para o bonde de chapéu na mão.

e eis que me esqueço mesmo, esqueço que estou calçado. passam a certeza invisível, ganham direito de presença, até há pouco, muitas horas e quilómetros após. só então os descalço, os arrumo, decido que assim ficarão até um próximo milénio, outros agraciarão com o seu afago os meus artelhos, assumo-me talião, condeno-os ao repouso da eternidade. 

eis uns sapatos com que nunca chegarei a andar descalço.

17.2.15

tornando-me japonês

se eu fosse japonês, comeria sushi com a mão, segurando dextramente a peça com os dedos, abocando-a em gesto rápido, deglutindo-a com samuraiana precisão.

assim dito, evidenciaria a minha incivilidade, a minha deselegância, a minha rudeza, até. mas sei, de provar outras iguarias, que a mão, os dedos, não só fazem parte da experiência completa, como sem ela, sem eles, não há completitude,  não há experiência, sequer.

sei como comeria se o fizesse com a mão. sei do ritmo, do preceito, do ritual a seguir para a degustação ideal. apenas uma convenção, única e irrisória, se interpõe entre mim e a plenitude. agora que a barreira se visibiliza, não sei quanto tempo resistirá. o do silvo de um sabre, suponho.

ao interiorizar o hábito, como se viera do sol nascente, torno irreversível a minha opção, as minhas mãos retornam, por fim onde pertencem.

ao meu inteiro controlo.

16.2.15

exatamente como a pele

chegam-me os cadernos de origens distantes, entregues à porta com aviso de receção. sem abrir ainda, já sei o que irei encontrar: são dois, um de capa como couro envelhecido, outro com capa como nuvem no segundo antes do sol. toco-lhes longitudinalmente, desnudo-lhes a superfície, descubro-lhes aromas.

o papel é da cor de pétalas de girassol que vi em certos campos num verão ido. pontos siderais marcam como matriz invisível a estrutura da página, a arquitetura vindoura dos meus pensamentos. 

aprende-se um caderno como se fora uma pele. sei-o, escrevendo palavras invisíveis com a ponta levíssima do dedo, antecipo o fluir das letras azuis, como estas que agora desenho nas páginas espraiadas no meu colo. 

quando se dá ao meu toque, sei que também o caderno me aprende. como a pele, exatamente como a pele.

15.2.15

flagrante devido

atravesso o parque em direção ao edifício grande. não é para ele que me dirijo, mas é para ele que aponto os passos. mesmo ali, tenho uma câmara nos olhos. procuro um ângulo, um pormenor, algo, que ainda não tenha captado em papel de nunca. 

esta semana já passei por aquela árvore. esta, e na semana anterior também. a árvore vê-me passar com frequência e hoje, dos troncos cinzentos, brindou-me com dois botões, de um tom de pétala de rosa deixada ao embalo do sol.

vejo a minha fotografia da manhã, pulo para cima do muro, estão altos os botões. é difícil isolá-los, com a câmara do telefone, mala na outra mão, instabilidade de quem quer capturar a parte sem o todo, o todo sem a parte.

abaixo, passa um sobretudo preto, com óculos de massa, pretos. olhamo-nos e ele, mais novo que eu, não mostra espanto, ou não o denuncia.

apanha-me só em flagrante, a apanhar a vida em flagrante.

14.2.15

letra bonita

é um caderno de argolas, aberto aqui à frente, na mesa onde escrevo, duas páginas preenchidas, palavras azuis reclinadas sobre linhas azuis. a caneta dela está pousada a um ângulo de cento e trinta e cinco graus acima do caderno.

conheço aquela letra desde que os meus olhos aprenderam a luz, mas ainda o espanto me assoma com a beleza, o ritmo, a regularidade, a precisão do traço. admiro os "r" e os "z", perfeitamente formados.

também ele tinha uma letra bonita, bonita de forma diferente da dela, mais inclinada para a direita, na linha. mas bonita, como a recordo.

a minha letra sai mais à dele.

mas não é tão bonita quanto a de qualquer dos dois.