28.12.16
fragmentos, continuidade, sentido
sem ela, descobriu, a história dele não mais era do que um repositório de fragmentos.
23.12.16
os arames finos da gaiola da saudade
todos os dias abria a gaiola da saudade e esperava vê-la voar. todos os dias ela ficava imóvel. ele fechava a gaiola consigo próprio dentro, com a saudade por companhia.
22.12.16
a busca e as palavras encontradas
depois de eliminar as redundâncias nas palavras que a poderiam descrever, limitou-se a quatro: os olhos dela sorriem.
19.12.16
uma aproximação aos sistemas dinâmicos e sentimentais
ela surgiu na vida dele como o ar que se encontra veloz com o vácuo.
18.12.16
refutação completa de toda a ciência do tempo
na tarde afiada a azul, nos ponteiros do relógio leu a direção a percorrer até ela. foi então que tomou consciência de que cada hora contém infinitos minutos, e cada minuto exatamente infinitos segundos.
viagens por cidades distantes e maravilhosas
ela não sabia que onde quer que estivesse, estava a viajar com ele.
13.12.16
11.12.16
a difícil arte de escrever em qualquer superfície
sorriu: na tela de prata da lua estavam escritas precisamente todas as palavras que lhe queria dizer.
10.12.16
retrato do artista enquanto colecionador de melodias
e um dia, transcreveu a melodia das palavras dela para uma pauta de música. ao piano, poderia ouvi-la sempre.
9.12.16
o poeta aprende a arte da escultura com matéria verbal
um dia cuidaria dela como das estrofes que cinzelava meticulosamente em cada um dos seus poemas, pensou ele.
do céu azul como campo fértil de cultivo
olhou as folhas das árvores rubras e douradas contra o céu absurdamente azul e pensou: é aqui que ela colhe as sementes de onde brotam entardeceres que incendeiam o céu. e sorriu, com o gosto garoto da descoberta.
8.12.16
o verdadeiro método de estudar o olhar
primeiro descobriu letras, depois titubeou-as em palavras, que fluiu em estrofes, seguiram-se poemas completos, um cânone, uma biblioteca imensurável. foi nos olhos dela que aprendeu a ler.
6.12.16
manual de pintura para amadores
soube-a, como sentia sempre, em tempos de luz ausente. muniu-se da paleta, combinou azurita e pigmentos de mar sedimentados e saiu a pintar o dia.
5.12.16
prólogo à refutação do tempo
o tempo é areia que se esvai na ampulheta, como sangue: só tu consegues estancar a efusão das minhas horas, disse-lhe ele.
4.12.16
da imprecisão da cartografia
mais tarde não conseguiam distinguir entre o que tinha acontecido e o que tinham sonhado. e não se importaram com a imprecisão.
o vocabulário enriquecido com óxido de chumbo
é nos dias mais opacos, disse-lhe, que precisamos das palavras mais cristalinas.
3.12.16
12.7.16
19.6.16
17.6.16
10.6.16
a contagem dos segundos num relógio de água
com o tempo, passou a encontrá-la no horizonte contínuo e nos arquipélagos das nuvens.
8.6.16
5.6.16
como uma borboleta conservada num alfinete
um peão trácio, com um joelho na terra, trespassa com a sua lança o peito do cavalo de Arsaces e, no impulso, também o rei. com a ponta de bronze saíndo pelas costas, Arsaces torna-se o primeiro cavaleiro transformado em centauro, o primeiro a montar até à eternidade por entre os mortos sem poder ser apeado.
assim conta Luciano de Samosata no capítulo XXVII dos Diálogos dos Mortos.
4.6.16
3.6.16
30.5.16
declaração de rendição pronta e assinada
disse-lhe: não sei o que me fizeste. podes fazê-lo de novo.
29.5.16
28.5.16
pergunta exata de resposta certamente inexata
diz-me tudo sobre o instante preciso em que sentiste que te amava.
a acuidade visual procedente da nostalgia
sentado à janela, fitando o horizonte, viu a noite depositar-se em véus finíssimos.
desvendar quase silencioso de carências
os seus melhores "faltas-me" ocultavam-se por detrás de um abraço.
27.5.16
26.5.16
a natural confusão entre o mapa e o território
ele achava-se um caso perdido, até que ela o encontrou.
25.5.16
breve ensaio sobre o desconhecimento
ele foi mudando sem se aperceber. por vezes reconhecia-se aqui e ali. mas acabou por reconhecer que nunca se conheceria totalmente.
24.5.16
guia de viagem do escritor perante a sua musa
escrevia a pensar nela. parava para recordá-la. recomeçava.
ponto de chegada, ponto de partida
bastou um relance para entenderem o óbvio. haviam-se pensado toda a vida.
23.5.16
fragmento encontrado no fundo de uma gaveta centenária
teve então a certeza de que se o amor tivesse forma, era a dos olhos dela.
22.5.16
mecânica insensata de fluídos
virou o relógio de areia com a esperança de que o tempo recuasse. iludido.
se isto é um homem frente a si próprio
o espelho deu-lhe, sem surpresa, a sua imagem exata. era feito de espaços em branco.
21.5.16
20.5.16
teoria da irrazoabilidade geral
a distância mais curta entre dois pontos era a ânsia por estarem juntos.
19.5.16
18.5.16
usucapião
ainda crianças quiseram um dia chegar à lua. já adultos, depois de se conhecerem, chamaram à lua deles.
16.5.16
15.5.16
brisas de primavera
sim, ele queria uma segunda oportunidade com ela mas, mais do que isso, queria uma primeira.
14.5.16
13.5.16
10.5.16
antevidentes
quando se encontraram por fim perceberam, num olhar, todos os impossíveis passados, todos os possíveis futuros.
9.5.16
8.5.16
7.5.16
6.5.16
a volta do navegante
só partia pelo regresso: tudo o que buscava eram os braços onde se acostava e os olhos onde fundeava os seus.
5.5.16
2.5.16
1.5.16
antes de acontecer
nem no mais longínquo dos seus pensamentos alguma vez a imaginou assim: não estava na sua natureza acreditar em milagres.
24.1.16
sonho sem despertar
acordaram-no em silêncio, ainda a luz não se coava pela esparsa fresta na parede baixa, onde mal se conseguia por de pé. sentiu algemarem-lhe as mãos atrás das costas, o frio do metal cortante em torno dos pulsos. vendado, a realidade fez-se de ébano. duas mãos, uma em cada ombro, arrastaram-no pelos corredores longos até que o ar frio da madrugada lhe embateu, em cheio, na fronte.
a parede áspera atrás de si perfurou-lhe as costas. a respiração pesada dos que o encostaram afastou-se. adveio-lhe a solidão extrema do condenado sem culpa formada. sabia o que se seguiria. a ordem de fogo veio rápida, ainda a ouviu, antes dos embates que o cravaram na parede, para logo a seguir o deixarem cair, como um títere de cordas cortadas.
despertou com a dor aguda das feridas a serem suturadas, a frio. balas extraídas, sangue estancado, carne reparada, alma desfeita. de novo o levaram para a cela, onde a luz mal fluía, em fio breve, da parede. perdeu a conta aos dias que se seguiram.
acordaram-no em silêncio, algemaram-lhe as mãos, sentiu o frio do metal em torno dos pulsos, a solidão extrema do condenado sem culpa formada, a ordem de fogo rápida, a queda, de novo, como um títere cerceado.
despertou com o corpo coberto de suor. lentamente tateou-se. com surpresa descobriu as cicatrizes ainda frescas, que doíam ao toque. abriu os olhos e descobriu que por uma frincha na parede se coava um fio de luz pálido. ouviu uma porta chiar, passos no escuro, dois braços. as algemas envolveram-lhe os pulsos logo a seguir.
da solidão do condenado sem culpa formada percebeu que não havia redenção.
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