24.12.17

gotas de entardecer

as gotas de entardecer escorrem pelos vidros da janela com a cor exata das memórias no interior do meus olhos.

5.8.17

canto ao vento

modulada no vento, chega-me a sua voz acetinada. dançando no vento, tecem-lhe as folhas um vestido floral. entrelaçada no vento, viaja a luz do seu olhar rebrilhante. e eu, vou até ela no vento, levado como se fosse areia, até que de mim, tudo o que resta, cabe num redemoinho.

18.5.17

canto do apaixonado despojado

para oferecer à minha amada levo apenas ternura. moldada com a exata forma de mim.

17.5.17

canto do viajante

nos anos primeiros  da minha vida, viajei por desertos, atravessei oceanos, conheci o gelo polar, o fogo equatorial. os anos  restantes da minha vida dedicarei a conhecer a minha amada. viva eu mais anos do que os que já deixei para trás, porque tanto mais há por descobrir.

canto dos palácios do céu e da terra

a terra é um palácio que olha para cima, o céu é um palácio que olha para baixo. passarei por cima de todas as águas em busca da mulher sete vezes tão bela. quando a borboleta rubra a ela se chegar, saberei que estou perante aquela que tem a chave do palácio do meu coração.

14.5.17

canto à lua breve

a lua estendeu sobre a terra uma toalha de prata. nela ceei com a minha amada e o nosso beijo brilhou na luz argêntea como um morango de rubis.

11.5.17

mil anos

em cada história mil história convergem, cada uma delas ponto de convergência de outras mil, numa biblioteca de bibliotecas de histórias.

obrigado a todos os que acompanharam algumas das que aqui foram apanhadas em pleno voo.

28.4.17

mil cantos IV

vem, meu amor, partamos para os campos. acolher-nos-ão nas aldeias. alvoreceremos nos vinhedos. veremos se florescem os pâmpanos, se as romãzeiras estão em flor. rosas colheremos, brancas e rubras também.
— e eu me ofertarei a ti. 

27.4.17

mil cantos III

as mandrágoras libertam o seu perfume, e os melhores frutos nascem da árvore de nós. para ti, minha amada, eu guardarei os frutos, os verdes frutos e os frutos já maduros:
— para ti os guardarei, ó amada minha.

26.4.17

mil cantos II

e perguntaram: — mestre, como se cura a doença de amor?
— saciai-lhe a fome com bolos de passas, a sede com laranjas ainda de orvalho perladas. e levai-o, levai-o com presteza, à presença da amada, para que também a alma se replene.

25.4.17

mil cantos I

como a laranjeira entre as árvores de um pomar
assim é a minha amada entre as mulheres
— sento-me ao abrigo da sua sombra
e nos seus beijos repouso a sede minha

20.4.17

novas de achamento

todas as viagens, percebeu, eram de descoberta. o mundo era um mar que se renovava a cada dia. dessas viagens escreveria novas de achamento. afinal, era a ela que dedicava cada padrão de descobrimento.

19.4.17

da impossibilidade do conhecimento

dela, sabia duas coisas: que moldava o tempo e alterava as estações. fazia-o sem gestos nem palavras: apenas com a presença. e ele nunca entendeu como.

18.4.17

curso completo de pesos e medidas

ela faltava e tudo o mais sobrava.

6.3.17

como quem enfia um colar de pérolas de água

descobriu que tudo o que tinha juntado, os livros, as músicas, as viagens, os mares, os faróis, as enseadas, as orquídeas, tinha um fio, afinal: aprendê-la.

2.3.17

a invisível melodia

no meio do jardim sentiu um aroma a orquídeas. era ela.

23.2.17

arrumador imprevisto

guardava as palavras dela arrumadas por aromas: amêndoas, mar ao entardecer, orquídeas, sândalo...

18.2.17

uma vereda salpicada de dourado

viu os passos dela ali, inspirou a luz perfumada de azul e sentiu a íntima alegria de um recém ressuscitado.

11.2.17

ao sábado à noite

era ao sábado à noite que lhe sentia mais funda a ausência. e no relógio dos seus dias, todas as noites eram de sábado.

9.2.17

uma espiral desenhada a palavras

colecionava as palavras que lhe queria dizer. não dizia: nunca eram suficientes para tudo o que lhe queria dizer.

1.2.17

enlaces e remates

um dia, fiaram as respetivas almas, entrelaçaram-nas e esqueceram o ponto onde ficou o remate. oh, tinham que ficar ligados para sempre, assim.

28.1.17

porto de abrigo

um dia encontrou uma enseada onde a água era tão límpida que se podia ver o pulsar das veias finíssimas da areia. ancorou. estaria ali para a abrigar, quando ela chegasse. e aguardou.

24.1.17

a voz associada às palavras, enquanto são escritas

foi quando, enquanto eram desenhadas na folha em branco, todas as palavras passaram a soar à voz dela, que não lhe restaram interrogações. nem uma.

23.1.17

palavras em forma de mancha de aguarela

para ele as palavras espalharam-se no papel como se fossem diluídas por água e absorvidas pela superfície branca até que se lhe tornou impossível distinguir entre as orlas de ternura saudade amor.

22.1.17

o tempo, essa grande escultura de areia

deixou de contar os dias. afinal, descobriu, sem ela nenhuma das formas de medir o tempo era aplicável.